09 setembro, 2011

ESCONDO-ME

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Rio-me. Choro. Fico um pouco histérica. Acalmo-me. Esqueço tudo o que alguma vez aconteceu. Penso em tudo aquilo que já aconteceu vezes sem conta. Observo-me ao espelho. Aprecio-me ao espelho. Apetece-me partir o espelho. Dispo a roupa e começo a dançar. Dispo a minha roupa e atiro-a para o chão. Ponho tudo de pernas para o ar. Deixo tudo onde está para que outra pessoa arrume. Apercebo-me de que afinal de contas sou sempre eu que arrumo tudo. Canto muito bem. Canto mal. Como coisas que não devia comer. Dobro-me e observo os meus músculos. Deixo de me dobrar e reparo nas minhas cicatrizes. Gostaria de saber como é que ficaria se fosse loura. Gostaria de saber como é que ficaria se fosse ruiva. Gostaria de saber como é que ficaria se fosse velha. Pinto-me como nunca o faria se fosse para a rua. Experimento roupas que nunca usaria em público. Olho para os meus seios. Imagino-os maiores. Mais pequenos, mais arredondados, mais firmes, menos firmes, mais bonitos, mais feios. Aceito os meus seios tal como são. Escondo-me. Respondo às pessoas e ganho. Tenho fantasias em que a estrela sou eu. Estico a pele da minha cara e imagino-a sem rugas. Pergunto-me se deveria fazer uma operação plástica. Esqueço a operação plástica e penso em algo muito mais barato. Grito comigo própria. Perdoo-me. Ensaio aquilo que irei dizer amanhã. Aumento o volume do rádio para não ouvir nada. Abro a torneira da água para não ouvir o rádio. Perco-me. Imagino-me numa ilha deserta. Imagino-me numa ilha deserta, mas com outras pessoas muito atraentes. Rezo. Procuro os meus defeitos. Aceito esses defeitos e procuro outros. Faço caretas ao espelho. Vejo como é que fico com ar de sedutora, de amuada, de zangada, de surpreendida, de chocada, de impressionada, absorta. Tiro a minha aliança. Olho para mim nua. Olho para mim e gosto do que vejo.

Dosha.»
([Anúncio da Dosha], Cosmopolitan, Setembro, 1999).

08 fevereiro, 2011

Cores

Deixa a música a tocar… começa por abanar a cabeça e a bater o pé ao ritmo daquilo que ouve. Dança com um sorriso na cara. Abana os braços no ar. Deixa sair a letra da canção por entre os seus lábios vermelhos. Lá fora chove, cá dentro, dentro dela, o sol brilha.


Ouve-se as gotas a baterem suavemente nos vidros da porta azul. Ele salta para a rua, sente a chuva na cara, na pele, a percorrer o seu corpo, sente o chão frio e molhado, mexe os dedos dos pés - a chuva faz cócegas. Ele sorri.
Põe o seu vestido mais bonito. Um pouco de batom e maquilhagem e decide ir passear.

O dia já virou noite. Caminha pela calçada escorregadia segurando-se ao seu guarda-chuva laranja. Sente-se bem, segura, forte. Esta noite consegue tudo.
Ele vê-a a chegar, o tempo começa a girar em câmara lenta, tudo o que o rodeia torna-se numa leve neblina cinzenta. A alma bate de alegria. Ajeita o cabelo encharcado, a roupa molhada e sorri. Esta noite não sabe o que quer.